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João Carlos Martins: “A cultura sobrevive a qualquer ideologia”

Na primeira matéria do E21, consagrado pianista e maestro fala sobre os tempos atuais e sobre como a tecnologia pode interferir na criatividade de um artista.

Eugenio Goussinsky

A palavra superação faz parte da vida de João Carlos Martins desde que ele tinha 7 anos. Foi quando ele começou a tocar piano e a decifrar, ainda menino, todo aquele universo desafiador apresentado no teclado. Passou a intuí-la, embalado pelas notas, que, como pontos de luz, o abriam caminho diante das incertezas de uma apresentação.

A relação com a música, para um grande artista como ele, é um mergulho no autoconhecimento, na confiança em ultrapassar limites antes intransponíveis, em tornar possível o que parecia impossível.

Foi assim, que, aos 11 anos, ele já encantou o grande pianista e maestro Alfred Cortot; aos 12, fez Magdalena Tagliaferro e Camargo Guarnieri o aplaudirem e, aos 21, se apresentou no Carnegie Hall, em Nova York, um dos grandes palcos em que desfilou seu vastíssimo repertório durante as viagens pelo mundo, que se tornaram constantes. Premiado e consagrado, tornou-se o primeiro pianista a gravar a obra completa de Johann Sebastian Bach (1685 – 1750) para piano.

Mas vários acidentes e um problema de distonia focal, que afeta seus músculos, o obrigaram a fazer, no total, 25 cirurgias. Afastado do piano por um longo tempo, se tornou maestro, tendo idealizado a Fundação Bachiana, que administra a Bachiana Filarmônica SESI-SP, e enveredado por um novo caminho musical. Hoje, graças a luvas extensoras, pôde reencontrar o teclado.

Nesta entrevista, que inaugura o portal Espinosa 21, João Carlos Martins, aos 82 anos, mostra como o menino que apenas intuía a palavra superação, passou, já adulto, a compreender seu significado de forma racional. E ressalta que a arte está acima de tudo. Das vaidades, das ideologias, da política. Confira.

 

Espinosa 21 – Na retomada da rotina, após a pandemia, você continua revezando os estudos com as apresentações. Há espaço para aprendizado ainda, tanto musicalmente quanto no dia a dia? Cite um exemplo.

João Carlos Martins – Não existe para um artista, para um pianista, para um maestro, como é o meu caso, retomada após a pandemia. Para um pianista, não existe a pandemia. Existe a dor causada a milhões de pessoas no planeta. Evidentemente, no que diz respeito aos cuidados com a saúde, com terceiros, claro que existe a pandemia. Quanto à parte artística, continuei realizando apresentações online e estudando diuturnamente como sempre faço. Claro que sempre há espaço para aprendizado, no momento em que você achar que tudo está perfeito é porque alguma coisa está errada, você pode aprender um pouco mais ainda. O melhor exemplo que eu posso citar é que hoje, quando eu comparo, evidentemente que eu tenho um amor enorme por todas as gravações que eu fiz na minha vida, mas quando eu ouço alguma, eu ainda penso: “Meu Deus, nesta nota eu poderia dar uma expressão um pouco maior”. Espaço para aprendizado existe hoje e sempre.

E21 – Como você vê o Brasil atual, do ponto de vista cultural?

JCM – O Brasil é um dos países, no que diz respeito à cultura, no meu caso à música, mais musicais do planeta. Nas artes plásticas também, com (Cândido) Portinari, Tarsila (do Amaral), na arquitetura com (Oscar) Niemeyer. O país, do ponto de vista cultural, é um exemplo para o mundo. Agora, política cultural é história, que eu prefiro não comentar. A Cultura sobrevive a qualquer ideologia política.

E21 – Quando e de que maneira nossa riqueza cultural foi melhor desenvolvida?

JCM – Nossa riqueza cultural foi desenvolvida em várias etapas. Por exemplo, quando D. João VI veio para o Brasil (1808), tivemos o exemplo do padre José Maurício Nunes Garcia (professor de música, maestro multi-instrumentista e compositor). Tivemos vários exemplos, como Aleijadinho. Também houve momentos, que, eu diria, obscuros, onde a cultura não teve o lugar que ela mereceria no país. Por exemplo, depois de um progresso cultural, na época de D. Pedro I, tivemos autores no campo da música com dificuldade para criar, com exceções, como por exemplo Nepomuceno ou Carlos Gomes, que foi para a Itália para desenvolver o seu trabalho e que acabou falecendo em Belém do Pará sem ter seu trabalho reconhecido no Brasil. No começo do século 20, voltamos a ter um vasto campo criativo.

E21 – Como você descreveria a trajetória cultural brasileira, principalmente em relação à música clássica, no século 20?

JCM – Voltamos a ter uma época gloriosa novamente na época da Semana da Arte Moderna de 1922. E nos 50, depois da Segunda Guerra Mundial tivemos uma época dourada, com inúmeros artistas europeus inclusive vindo morar no Brasil. Ocorreram talvez as melhores temporadas artísticas que tivemos em toda a história. Depois, nos anos 70 novamente tivemos um período um pouco mais obscuro e voltamos agora no campo da música nos anos 90 a ter um desenvolvimento maior.

E21 – O Brasil, no século 20, chegou a revelar um número de exímios pianistas quase tão grande como o de craques de futebol. Foi uma outra expressão da identidade nacional. Como foi esse período e como anda a formação de músicos brasileiros atualmente?

JCM – No campo dos intérpretes, no começo do século, tivemos Guiomar Novaes, Magdalena Tagliaferro. Depois, nos anos 50, o Arthur Moreira Lima, Nelson Freire, eu mesmo, Jacques Klein. Passamos então por uma época com menos talentos deslumbrando no horizonte brasileiro. Atualmente estamos passando por um problema de análise, eu diria. Tivemos uma época de pianismo, em que havia vários pianistas e poucos instrumentistas de cordas. Agora, temos muitos instrumentistas de cordas e menos pianistas. Na questão de sopro, temos sopros maravilhosos no campo da música e orquestras que estão se desenvolvendo por esse Brasil afora. Isso é da maior importância, agora por exemplo, há uma orquestra indígena na fronteira entre Roraima e a Venezuela. Nunca vou perder a esperança em nosso desenvolvimento cultural. A cultura está acima de qualquer posição política, a arte e a política não se misturam, a arte continua seu desenvolvimento hoje e sempre.

E21 – O que o levou a se encantar pela obra de Bach? Onde reside a beleza maior na obra de Bach e como os jovens de hoje poderiam utilizar essa mensagem?

JCM – Bach foi a síntese de tudo que aconteceu antes dele e a profecia de tudo o que aconteceu na música ocidental até o século 21, até 2022. Diria que Bach foi o único computador com alma que existiu na história da humanidade, suas obras eram pura computação, mas com alma e coração. Qualquer jovem que estuda a obra de Bach está no caminho certo para entender o universo da música clássica.

E21 – Há hoje alguma peça ou compositor da história da música clássica que você não conheça? O que o levou a dominar tão vasto repertório?

JCM – Realmente tenho um repertório vasto, mas há muitos compositores do Barroco que eram contemporâneos de Bach, de Haendel, de Vivaldi, mas que não ficaram no cotidiano das apresentações clássicas. Posso dizer a você que, realmente, não interpretei alguns desses vários compositores do Barroco, menos no Classicismo e no Romantismo, dos quais eu já ouvi muitas peças. Mas meu repertório graças a Deus vai desde a Renascença até 2022.

E21 – Ser um grande artista, com profundidade e concentração, é mais difícil hoje com todos os estímulos de um mundo tecnológico? Conte como lida com essas mudanças de hábitos da sociedade.

JCM – Concordo plenamente com essa pergunta, porque eu acho realmente que a concentração de um artista, com tanto desenvolvimento da tecnologia hoje, no século 21, não é a mesma de um artista no século 18, por exemplo. Naquela época uma criança começava aos 5 anos a ver o pentagrama. Hoje, aos cinco anos uma criança já está brincando com o videogame. Realmente os hábitos mudaram muito. Bach nasceu em 1685, era a época da criatividade, hoje estamos na época da tecnologia. Mas você vê em um jornal, ao mesmo tempo, a cada semana, um novo smartphone sendo lançado. E vira a página e vê que encontraram o osso de um dinossauro de 30 milhões de anos atrás. Então, 300 anos não é nada na humanidade. Quem sabe daqui a 300 anos a tecnologia e a criatividade artística estejam unidas e nós tenhamos um novo J.S Bach.

E21 – Em grande parte de sua vida, como pianista, você se aproximou mais de ideais da direita (foi secretário da cultura do Estado de São Paulo em 1982 e 1983, no governo de José Maria Marin), que têm a ver mais com a defesa do individualismo. Em determinado momento, você se aproximou mais de ideais progressistas, mais ligados ao social. Isso tem a ver com sua transformação de pianista, que compete com tantos outros, para maestro, que tem responsabilidade sobre muitos?

JCM – Eu posso dizer para você que sempre me aproximei não de ideais da direita, sempre me aproximei de ideais das artes. Sempre digo: as artes estão sempre acima de qualquer atitude polarizada, de direita ou de esquerda. Fui secretário da cultura e tenho muito orgulho de ter salvado o Teatro Oficina (criado por Zé Celso Martinez Corrêa), o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) e dado início ao tombamento da Casa das Rosas e da Serra do Japi. Cada vez mais eu penso que o importante é você deixar um legado social, tenho isso desde a minha infância. Posso ter tido amigos que pensavam de outra forma, mas os meus ideais sempre foram direcionados às artes e é com as artes que espero seguir até o apagar das luzes. O importante é responsabilidade social e sustentabilidade, que fazem parte do meu vocabulário e farão sempre.

E21 – O que mais se encaixa à definição de vida: a sinfonia, a ópera, a sonata, o estudo, o poema sinfônico ou outro estilo? Por quê?

JCM – Todos esses estilos se encaixam à definição de vida. Cada um significa uma parte da vida de um ser humano, a vida de um ser humano passa por diversas fases, de sinfonia, ópera, sonata, estudo, poema sinfônico…Todos fazem parte da vida de um ser humano. Se a vida de alguém pode ser alterada, pode ter novos caminhos, por que não ter momentos em que a ópera é mais importante que a sinfonia, em outros uma sonata, um estudo e por aí adiante? A pergunta não é por que, mas por que não?

E21 – E na vida, na sua opinião, cada um é mais solista ou maestro de sua trajetória? Por quê?

JCM – Também acho que somos todos solistas ou maestros de nossas trajetórias. Durante a vida você pode cometer erros e acertos. O grande segredo é corrigir os erros e aprimorar os acertos, isso fez parte da minha trajetória a vida inteira. Sou uma pessoa com erros e acertos, os erros procurei corrigir e os acertos procurei aprimorar.

E21 – Como, desde a infância, você foi definindo a palavra esperança e como a define hoje?

JCM – Qualquer pessoa que não enxerga, que não vê, que não acredita na palavra esperança, pode desistir de alcançar seu objetivo. Só se alcança um objetivo quando a pessoa tem esperança e acredita em um futuro no qual se respeita as memórias do passado, mas se mantém a esperança para um futuro melhor e realizações.

E21 – Faça uma crítica construtiva aos seus críticos e uma autocrítica construtiva a você em sua trajetória.

JCM – Quanto aos críticos, não me lembro de nenhuma biografia de algum crítico e já li várias biografias de compositores e intérpretes. Quando uma crítica é ruim, por acaso esta eu olho para ver se alguma coisa eu posso me aprimorar, se tem algum sentido, se a crítica é muito boa, eu nem fico analisando, porque o importante é você procurar se aprimorar e não viver admirando alguém que te admirou, por uma ou outra crítica na imprensa. As poucas críticas negativas que tive podem ter sido de má-fé. Alguma outra crítica pode ter dado uma análise para eu poder me aperfeiçoar no que diz respeito àquele aspecto da arte interpretativa, que é o que conduziu minha vida até hoje. Já a autocrítica construtiva é a seguinte: jamais desista, porque você pode sempre conseguir algo melhor amanhã, e depois, no dia seguinte, algo melhor do que amanhã. E no outro dia algo melhor também. Ou seja, você tem que procurar, em toda a sua vida, dia a dia, aperfeiçoar a sua arte e seus objetivos. É assim que eu penso, de uma forma construtiva, com relação à vida desse velho maestro.

 

 

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