– por Eugenio Goussinsky
As sociedades em geral, ao longo da história, têm se deparado com momentos em que prevalece a evolução do mal, sentimento de ódio em grande parte originário da frustração e da projeção no outro das próprias dores e fragilidades.
Em muitas ocasiões esse sentimento se transforma em atitude. As consequências disso são períodos de preconceito, perseguições e trágicos acontecimentos.
Judeus e negros têm sido alvos de deste tipo de situação, ao longo dos anos, e sentido na pele e na alma as sequelas da discriminação.
Alguns episódios, no entanto, já demonstraram a força e a importância da união destas duas comunidades contra qualquer discurso de ódio, principalmente porque foram vítimas das piores atrocidades da história: a escravidão e o Holocausto.
“O racismo é a maior ameaça do homem”, dizia o rabino Abraham Joshua Heschel (1907-1972), de origem polonesa e que, radicado nos Estados Unidos, atuou ao lado de seu amigo, o reverendo Martin Luther King Jr. na luta pela igualdade de direitos dos negros (ambos aparecem na foto deste artigo).
Heschel, entre várias iniciativas em prol dos direitos civis dos negros, participou da marcha de Selma até Montgomery, no Alabama, reivindicando o direito dos afro-americanos irem às urnas. Assim como Heschel, o rabino Jacob Rothschild, antigo líder do Hebrew Benevolent Congregation Temple, de Atlanta, foi um defensor da causa dos negros americanos.
Rothschild estimulou a congregação judaica a se juntar ao movimento e manteve sua postura mesmo após segregacionistas brancos incendiarem a sinagoga que ele liderava.
Por parte da comunidade negra, manifestações de apoio à luta dos judeus contra o antissemitismo foram a retribuição natural. Em seu livro “What Would Martin Say?”, o líder comunitário Clarence B. Jones, ex-advogado, dedicou um capítulo ao combate ao antissemitismo, relatando a ligação de Luther King, de quem era amigo e redator de discursos, com a causa judaica.
Após as mortes de Luther King, assassinado em 1968, e de Heschel, em 1972, a união das duas comunidades arrefeceu.
Muito em função de desilusão, em meio às próprias dificuldades da comunidade negra que, apesar da conquista de direitos, ainda buscava uma maior inserção social e sofria com o preconceito.
As dificuldades de Israel, envolta em guerras por sua sobrevivência, também contribuiu para que muitos negros se identificassem com a causa palestina. Também muitos membros da comunidade judaica, ensimesmados em seus próprios problemas, passaram a ver a luta dos negros com desconfiança.
Essas situações, no entanto, desvirtuaram a essência das duas comunidades e as distanciaram da necessidade visceral de permanecerem unidas.
“Opor judeus a negros desloca o debate sobre as estruturas racistas que realmente importam e produz, também, uma falsa narrativa que não considera as diversas articulações na luta antirracista em que negros e judeus estiveram juntos no passado e no presente, ou seja produz um uso oportunista dos judeus e do antissemitismo dentro de uma pauta da direita (contra o movimento negro) e por si só antissemita pois faz uma seleção arbitrária da história do antissemitismo”, enfatizaram professores de origem judaica, em nome do grupo brasileiro Judeus pela Democracia (SP), em janeiro de 2022.
Quando a comunidade judaica defende, de forma legítima, a importância de não se esquecer dos crimes cometidos contra ela pelo regime nazista alemão (nos anos 30 e 40 do século passado), é fundamental que também tenha em mente a importância de não se deixar de lembrar das atrocidades cometidas contra os negros e dos anos de sofrimento pelos quais a comunidade negra passou, com regimes segregacionistas nos Estados Unidos e na África do Sul, entre outros.
Também um negro precisa se identificar com o sofrimento atroz do povo judeu, que, por séculos, foi perseguido, expulso e obrigado a viver em guetos, antes de experimentar o auge da dor, com os campos de concentração construídos pelo governo alemão na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
A dor de um acaba também sendo a dor do outro porque, na verdade, ambas são feridas que agridem a essência da condição humana.
As próprias “leis para a proteção do sangue e da honra alemãs”, promulgadas em Nuremberg em 1935, discriminavam tanto judeus quanto negros, quando impediam judeus alemães de se casarem ou terem relações sexuais com pessoas de “sangue alemão”. A proibição também valia para negros, muito perseguidos também pelo regime nazista, apesar de terem menor quantidade de habitantes na Alemanha.
Luta antiga
E a luta de ambos é antiga. Segundo artigo de Jane Bichmacher de Glasman, mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicado no AfroPress, o Quilombo dos Palmares, liderado por Zumbi dos Palmares, (1655-1695), contava com a presença permanente nas aldeias de mulatos, índios e brancos.
“A perseguição da época a minorias étnicas, como judeus, mouros e outros, além do combate às bruxas, heréticos, ladrões e criminosos, explica brancos terem ido viver no quilombo de Palmares. Zumbi foi o maior líder quilombola e sem dúvida o mais enigmático e místico. Sob seu reinado viveu e lutou o maior quilombo da história; grande também pela sua face multiétnica, pois em suas fortificações se refugiaram os escravos foragidos, os judeus perseguidos (pela Inquisição), os hereges e os índios entre outros, segundo as últimas descobertas de arqueólogos e etnólogos”, destacou Glasman.
No livro “Negros e Judeus na Praça Onze – a Historia Que Não Ficou na Memoria”, de Beatriz Coelho Silva, a autora relata uma época em que imigrantes negros e judeus viviam na Praça Onze, no centro do Rio de Janeiro, e compartilhavam o sofrimento das perseguições com uma convivência amigável, regada a festas, música e um bom humor que até lidava com as frustrações e anseios de ambos. Neste período, no início do século 20, a diversidade prevalecia na região, deixando a diferença física como um detalhe sem importância.
Atualmente, têm aparecido na mídia algumas controvérsias entre essas duas comunidades. O rapper americano, Kanye West, da comunidade negra, fez uma série de comentários antissemitas. Por sua covardia e brutalidade, suas postagens foram bloqueadas nas redes sociais, em outubro último.
Já no estado brasileiro do Rio Grande do Sul, uma aluna do Colégio Israelita Brasileiro (que em nota repudiou a atitude da estudante) gravou um vídeo em que destilou, de forma racista e doentia, uma série de frases discriminatórias contra negros, pobres e nordestinos, em ato criminoso a ser investigado pelo Ministério Público local.
Tais situações são perigosas deformações, moldadas por uma educação deturpada e preconceituosa, mas que não refletem a essência das duas comunidades, tampouco a história de sofrimento e empatia que fez uma se aconchegar à outra.
E tal convicção não está restrita ao passado. Em 2021, o senador Jon Ossoff, de 35 anos, assumiu o cargo, tornando-se o primeiro senador judeu do Estado da Geórgia, fazendo o juramento com a bíblia que pertenceu ao já citado rabino Jacob Rothschild, ativista em prol da causa dos negros, cuja sinagoga sofreu o atentado de segregacionistas.
“Lutar pelas pessoas da Geórgia significa lutar por justiça equitativa. E a aliança entre negros e judeus no movimento dos direitos civis é um modelo para o que podemos conseguir, continuando a construir a coligação multirracial e multigeracional que estamos a construir”, argumentou Ossoff. Naquele momento, tão recente, Ossoff mostrou que a meta pela união entre judeus e negros é sempre necessária. E está mais viva do que nunca.