Por Eugenio Goussinsky
A conversa de 20 minutos que tive com Pelé, em 2019, foi uma fonte de imensas descobertas. Eu era um dos cerca de 20 jornalistas que teriam um tempo reservado para uma entrevista.
Enquanto eu esperava, do lado de fora da sala do Rei, no Museu Pelé, grandes jogadores do Santos no passado, sentavam-se, rodeando uma mesa oval, dentro de um aquário, como se fossem membros de uma corte real.
No momento do meu encontro, porém, a questão da majestade ganhou outra dimensão. A naturalidade e a forma simples com que ele me recebeu ultrapassavam todas as convenções, artificiais, é verdade, utilizadas hoje por aqueles que se dizem, ou se sentem autoridades.
O cumprimento foi ao estilo de mãos se encaixando de cima para baixo, gerando um caloroso estampido. Tudo foi tão natural que, em instantes, me vi envolvido em um afetuoso abraço. Na conversa, meu novo e velho amigo, falou sobre questões familiares, revelando uma intimidade carinhosa pelos seus que, à distância, parece inimaginável para uma lenda.
Falou da irmã, do irmão, brincou sobre o cunhado, relembrou o passado, como se, sentado em uma cadeira de balanço, em lugar de um trono, o misturasse ao turbilhão de acontecimentos fantásticos de sua carreira, agora pulverizados pelo tempo, revivendo, em forma de lembrança, pedaços silenciosos daquela catedral de momentos que foi sua trajetória: cada treino, cada jogo, cada entrevista, cada ovação das multidões, cada cumprimento, cada soco no ar, cada extravasar de emoção, cada pensamento, cada lágrima, cada gota de suor, cada dia seguinte, cada preocupação, cada esperança. Cada gol. Cada vitória.
Na conversa, a grande descoberta que tive foi a de que cada um desses momentos era vivido com uma simplicidade muito, mas muito acima da média.
No judaísmo, se diz que a colocação dos Tefilim (faixas de couro envolvidas no braço e na testa, vinculados a uma caixinha com uma benção), é sagrada porque, nesse ritual, o homem se conecta consigo e com o universo integrando razão, com as faixas ligadas à cabeça, e emoção com as que envolvem os braços direcionando a caixinha para o coração. Também na psicanálise, há uma questão ligada a superar resistências do inconsciente.
Pelé, conforme falava comigo, revelava todos esses aspectos. Por meio de palavras, expunha a maneira perfeita com que ele lidava com sua espontaneidade. E o futebol, para ele, foi uma forma de comunicar ao mundo a sua própria identidade. De um jeito tão profundo, que ninguém jamais conseguiu.
Tive o privilégio, naquela conversa, de perceber o que muitos não percebiam, em um Brasil ainda confuso em relação à sua própria identidade, ao racismo ainda presente e ao significado do futebol, para bém além das quatro linhas.
Era tentador se enganar e ver apenas as jogadas mirabolantes e inigualáveis serem motivo para limitar as qualidades de Pelé como indivíduo. Mas a gênese de todos esses feitos emanava da própria alma de Pelé, incrivelmente hábil em deixar fluir toda a sua essência criativa.
Isso não está presente no jeito sisudo de Messi, nem na vaidade de Cristiano Ronaldo, só para citar dois exemplos pretensiosos dos que insistem em fazer comparações descabidas. Portanto, em campo, apesar de excepcionais, eles não agem com a mesma naturalidade.
Pela falta de compreensão, percebi que a simplicidade de Pelé, tão genial como a de Da Vinci quando pintava ou de Beethoven quando compunha, era mal interpretada quando ele dava declarações sensatas e profundas, como a que pedia melhor qualidade de vida para as crianças. Até sua postura antirracista, à sua maneira, nunca foi tão bem entendida.
Pelé, em grande parte, também foi alvo da falta de empatia, fruto da inveja, que se tornava cobrança, em relação ao seu gigantesco talento. Ele costumava terminar suas frases, com uma pergunta, também de forma simples. Entende? Me entende?
Na volta de seu velório, me veio a mesma sensação do momento em que voltava daquela conversa. Após o velório, no mesmo ponto, tive a impressão de que a conversa nunca terminara.
Fluiu como os anos, a noite que se transforma em dia, a esperança que se renova, o drible fácil, a ginga sobre as adversidades.
Compromissos, dinheiro, vaidade, comodismo das redes sociais, futilidades, são um convite a se afastar da essência. Vimos poucos representantes de clubes, jogadores, jornalistas, entre os presentes no adeus do maior dos craques. Não vi nessa atitude de muitos desses ausentes, diferentemente da multidão que compareceu e que representava o povo, o verdadeiro amor pelo futebol. Podem viver dele, mas isso não é suficiente.
Vou ter a presunção de falar que acho que me identifiquei tanto com Pelé por existir em mim um imenso amor pelo futebol. De uma maneira simples e ao mesmo tempo profunda, tão bem retratada por ele. Esse amor se comunica, passa de pessoa para pessoa. O vejo também no olhar do meu filho.
E fico ainda mais grato a Pelé por ter criado o atual futebol. Eu amo o futebol, desde que ele me ajudou a encontrar a minha identidade na fase difícil da infância. E dentro dos meus limites humanos, em meio ao imenso amor, fico procurando formas de retribuir a Pelé por tudo o que ele fez por mim.
Já o estudei, já o defendi, já o encontrei e até o abracei. Todas as tentativas só se acalmaram, no entanto, quando, voltando pela serra envolta no mar de faróis que cintilavam sob o véu da noite, me veio a frase que se tornou a melhor retribuição que alguém pode dar a outra pessoa, em qualquer momento da vida, mesmo que ela seja um rei. Eu o entendi.