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Resistência ucraniana e soberba de Putin fazem guerra entrar em impasse mortífero

Especialistas comentam reação ucraniana e momento atual, em que a Rússia, quase um ano depois de iniciar a guerra, insiste em atingir seus objetivos com pouca perspectiva de negociação

– Por Eugenio Goussinsky

O tom do presidente russo Vladimir Putin era triunfal no momento em que, no fim de setembro de 2022, anunciou a anexação das regiões separatistas de Donetsk e Luhansk, além de Zaporizhzia e Kherson, na Ucrânia (crédito da foto: presidência da Ucrânia).

As regiões haviam sido ocupadas por tropas russas três meses depois destas invadirem o território ucraniano, em 24 de fevereiro último. Dois dias depois do exaltado anúncio da anexação, porém, a Rússia se deparou com um revés determinante para seus planos.

De forma vexatória, soldados russos recentemente recrutados, muitos deles profissionais liberais, artesãos, fazendeiros, sem preparo militar, deixaram a cidade de Liman, importante entreposto ferroviário da região, após contraofensiva do exército ucraniano.

“Putin certamente estava contando com a plena colaboração do povo de descendência russa na Ucrânia, mas eles estão concentrados em regiões limítrofes, e muitos deles já estão assimilados pela nação ucraniana. Ele imaginou que uma grande parte da população ucraniana considerava o governo de Zelensky ilegítimo, e certamente não iria riscar a morte defendendo-o. Estava muito enganado”, afirma Barbara Weinstein, professora de História da New York University.

A cena da retirada ilustrou a precariedade do planejamento russo para a invasão e alguma defasagem de armamentos em relação aos ucranianos, que há meses estavam recebendo auxílio militar de potências ocidentais.

Matéria recente do The New York Times, do último dia, inclusive, citou que os combatentes de Putin se empilhavam no topo de blindados superlotados, avançavam a pé com fuzis Kalashnikov de meio século atrás e quase não tinham o que comer.

Neste cenário que a soberba do presidente russo não conseguiu prever, a Ucrânia, comandada pelo presidente Volodymyr Zelensky, obrigou Putin a refazer os planos, agora com ordens de recuo, como na cidade de Kherson, em novembro.

A tensão entre os países se revigorou após o fim da União Soviética, em 1991, com a região da Crimeia se tornando o núcleo do conflito. O problema estava controlado desde 1954, quando o presidente soviético, Nikita Kruschev, transferiu a Crimeia para o território ucraniano.

Falha na Inteligência

Quando a república soviética se esfacelou, a Rússia passou a almejar novamente o controle da região, anexada em 2014, após a destituição do presidente ucraniano, Viktor Yanukovich, aliado do governo russo.

Putin viu a destituição como um golpe e iniciou um período de retaliação e hostilidades, que levou à retomada da Crimeia. Em relação ao atual conflito, Putin tentou repetir a experiência, mas tem fracassado.

Caberia, no atual contexto, a afirmação de que faltou à Rússia levar em conta um dos princípios básicos da guerra: “Conheça seu inimigo”.

“Primeiro a inteligência russa não foi eficiente no sentido de apurar os pontos fracos e fortes da Ucrânia. Houve basicamente uma falta de planos estratégicos. Se houvesse algum planejamento, a coluna de blindados russos não teria sido exporta e ficado parada por muito tempo no barro de chuva da Ucrânia. A Rússia também procurou usar equipamentos e armamentos da 2ª Guerra Mundial contra equipamentos doados pelos aliados. Isto prejudicou muito a ofensiva russa”, avalia o especialista em Inteligência, Ricardo Gennari, mestre em Políticas Públicas (FGV-SP) e pós-graduado em Política e Estratégia (USP).

Zelensky, aproveitando a força de sua imagem ligada à resistência e à defesa da identidade ucraniana, se viu cercado de recursos, emocionais e até militares, para dar moral às suas tropas e manter a esperança em não ceder às exigências russas para dar fim ao conflito.

Quase um ano depois do início da invasão, que Putin insiste em não chamar de guerra, e sim de “Operação Militar Especial”, o atual impasse, além das mortes por causa de bombardeios desenfreados, leva a alguns questionamentos.

Ucrânia fora da Otan

O primeiro é até que ponto a Ucrânia terá forças para resistir à sanha do exército russo, que desde a tomada da Crimeia, em 2014, não esconde o interesse em dominar boa parte do país.

As razões são nacionalistas e econômicas, já que a região é uma importante produtora de recursos energéticos, como o gás natural. E o segundo, mais otimista, busca entender quais os caminhos possíveis para o fim dos combates.

Para o desfecho do conflito, no entanto, a Ucrânia dificilmente ingressará na Otan ((Organização do Tratado do Atlântico Norte), segundo Gennari. As conversas para a entrada da Ucrânia no bloco ocidental foram um dos pretextos para a invasão russa.

“O cenário do final da guerra está indefinido por falta de acordos entre os dois países. A Ucrânia é um país rico e bem situado estrategicamente na Europa. Militarmente, o objetivo dos Estados Unidos e da Otan é trazer a Ucrânia para o Ocidente. Como mebro da Otan, a Ucrânia seria obrigada a aceitar situações como a instalação de mísseis balísticos a 800 km de Moscou. Não podemos esquecer, que o ex-presidente Barack Obama, no projeto ‘Guerra nas Estrelas’, tentou instalar mísseis na Polônia, mas depois de acordos não foram instalados. Acredito que seja difícil um acordo no sentido da Ucrânia passar para o Ocidente”, diz.

Gennari afirma que, em um breve período, anterior à invasão, em que a Rússia mobilizava tropas, houve tentativas de conciliação, para se evitar um conflito. Mas, a partir da impossibilidade de um acordo naquele momento, a Rússia iniciou uma operação sem os cuidados necessários.

Embalada pela contraofensiva a partir do segundo semestre, a Ucrânia mostrou que não só conseguiu resistir, como também passou a almejar um recuo total da Rússia. Sua capacidade de resistir, segundo Gennari, vai até onde os aliados ocidentais se dispuserem a enviar ajuda militar.

“A Ucrânia ainda está de pé pelo esforço de guerra dos ucranianos e principalmente pelo apoio financeiro, administrativo e militar. Caso contrário não teria recurso para aguentar uma guerra de aproximadamente 10 meses”, ressalta.

Apoio ocidental

Além do erro de ter invadido Kiev sem um apoio mais consistente de forças aéreas, tornando pouco eficaz a incursão por um terreno montanhoso e por vias de acesso formais, a Rússia foi surpeendida pelo ânimo dos combatentes ucranianos e pelo rápido envio de suprimentos da Otan, o FGM-148 Javelin, uma arma antitanque que conseguiu segurar as colunas de tanques russos. Outro equipamento determinante foi o sistema antiaéreos Stinger.

“Agora os drones têm mudado ainda mais a estratégia de combate da Ucrânia, onde os mesmos estão se defendendo e atacando áreas russas, levando prejuízos aos russos. Isso tudo acrescido de uma estratégia de fortalecer seu exército, com cidadãos, que, diferentemente dos russos convocados, estão conseguindo combater o exército inimigo e fazê-lo recuar”, ressalta Gennari.

No início da ofensiva, ao estilo dos czares dos tempos do Império, o discurso exaltado e nacionalista de Putin, remetendo aos líderes ditadores da antiga União Soviética, tinha com objetivo passar a impressão de que a Grande Rússia estava de volta para desafiar o Ocidente.

Mudanças de rumo

Além de não admitir a entrada da Ucrânia na Otan, outro motivo alegado pela Rússia para iniciar a invasão, foi a acusação de que, nestas regiões, o governo ucraniano estaria praticando um genocídio contra os moradores russos, além de estar supostamente ligado a forças neonazistas. Nenhuma dessas afirmações, no entanto, foi comprovada.

“No início podia-se imaginar que o país acreditava que a presença militar em multiplas frentes de avanço na Ucrânia levaria a queda do governo Zelensky. Foi o que se viu com tropas avançando pelo sul, pelo leste nordeste e norte, em específicos alvos”, diz o professor de Relações Internacionais do Ibmec (Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais), Vladimir Feijó.

O avanço sobre a capital Kiev tinha como base o interesse político. A estratégia também previa o controle das principais cidades de Dumbas para consolidar apoio aos separatistas que enfrentavam tropas leais à Ucrania muito bem entrincheirados. As previsões russas, no entanto, não se concretizaram.

“O conflito passou por um rearranjo e a Rússia escancarou que pretendia anexar grandes partes da Ucrânia ao organizar referendos (que culminaram com a anexação) e abraçar como regiões russas o leste e o sul daquele país e convocar reservistas”.

Putin, então, apelou para o lado psicológico, conforme ressalta Feijó.

“Para reduzir a necessidade de mais pessoal em solo e ainda tentar desgastar a resolução do governo e povo ucranianos de seguir lutando, deu-se início a ataques à infraestrutura de água e luz do país, provavelmente para aproveitar-se da aproximação do inverno e pânico de aniquilação caso o conflito se estendesse por muito mais tempo”.

A retórica nuclear, segundo Feijó, até agora é uma estratégia voltada a tentar assustar o outro lado, mas pouco provável de ser colocada em prática.

“A ameaça nuclear se construiu em torno do perigo de aniquilação recíproca. É arma de dissuasão. Seu uso tem efeito muito grande para ser considerado como efetivo, em situações que envolvem interesse territorial e populacional. Desta

forma é mais intimidação entre lados distantes”.

Aliança com a Belarus

As sanções ocidentais e a redução das exportações russas de carvão, petróleo e gás natural transportados por gasodutos para a Europa foram instrumentos de pressão, mas ambos os lados têm encontrado alternativas para o setor energético.

“A Europa sofre com a inflação, reduzindo a atividade econômica, elevando o desemprego e pressionando as contas públicas. Entretanto, alguns países tem se mostrado eficientes na reversão desta dependência. Notadamente o caso da Alemanha que flexibilando regras orçamentárias, ambientais e trabalhistas está assegurando infraestrutura a fornecer ao país capacidade de importação de gás liquefeito a reduzir em muito a necessidade de importação da Rússia”, diz Feijó.

A Ucrânia, apesar da reação, têm sofrido grandes perdas, principalmente quando o tema são as vítimas do conflito. Em novembro, o general Mark Milley, mais graduado dos Estados Unidos, afirmou que cerca de 100 mil soldados russos e 100 mil ucranianos foram mortos ou feridos na guerra na Ucrânia.

O comandante Eirik Kristoffersen, do estado-maior da Noruega, país que fraz fronteira com a Rússia, disse, em entrevista à rede TV2 que o número de mortos no conflito se aproxima de 300 mil, incluindo cerca de 30 mil civis, a maioria de ucranianos.

“No caso desta guerra, a Ucrânia tem um monopólio total do discurso de direitos humanos. Afinal, pouquíssimos russos do meio civil estão morrendo por causa desta guerra, mesmo os soldados serão melhor tratados porque os ucrainianos sabem que eles podem ser aliados na campanha para pôr fim à guerra. Nesta guerra, a pessoa não armada, indefesa—o velho, a criança, a mulher grávida—todos estão no lado da Ucrânia. Putin tentou criar um retrato das pessoas de descendência russa como alvo de violência por parte dos ucrainianos, mas por enquanto, este discurso não está sendo amplamente aceito”, diz a professora Weinstein.

A última reunião de Putin com seu aliado, Alexander Lukashenko, ditador da Belarus, em 19 de dezembro, mobilizou mais um apelo de Zelensky para o mundo. O presidente ucraniano, dois dias depois, foi a Washington para se reunir pela primeira vez com o presidente americano, Joe Biden.

A partir de então, Estados Unidos e a Europa ocidental se mobilizaram ainda mais para dar suporte à Ucrânia, que continuou a ser bombardeada, mesmo demonstrando uma resistência surpreendente e dificultando os objetivos russos.

A preocupação atual do presidente ucraniano é em relação a uma aliança entre a Rússia e Belarus, cuja fronteira com a Ucrânia está a 100 km de Kiev, para nova investida na capital ucraniana.

A conversa com Lukashenko, no entanto, também despertou a suspeita de que a Belarus seria a próxima tentativa de anexação russa. Em se tratando de Putin, tudo pode acontecer. A única certeza em sua política é a de que a Guerra Fria não acabou.

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