Colunistas
Fui o último a entrevistar Mikhail Gorbatchov
Eugenio Goussinsky
Todo grande herói de sua época é visto desta forma porque ele aceita a condição humana de desafiar aquilo que o oprime. Muitas vezes regimes, sociedades, pessoas e hábitos opressores se apresentam de tal maneira que, pelo medo, geram conformismo e assimilação das vítimas.
Mas Mikhail Gorbatchov, falecido no último dia 30, aos 91 anos, foi um destes que, buscando desbravar novos paradigmas para o mundo, mostrou que as próprias vítimas acabam sendo em parte responsáveis por permitirem o crescimento da opressão.
E esperam, ansiosamente, por um salvador que, de tempos em tempos, as representa e as ajuda a se defender daquilo que as aterroriza.
Como Shimon Peres e Barack Obama, Gorbatchov nos fez sentir orgulho e esperança em viver no mesmo período que ele.
Fez o impossível se tornar possível.
Deu novos ares de esperança à humanidade, sendo determinante em seu trabalho de “esfriar” a guerra fria. Defendeu menos investimentos em armas e a liberdade de expressão.
Durante a minha juventude, vibrava ao vê-lo pela TV. Admirava sua política, a ponto de ter colocado terno e gravata e, intrometido, ter entrado no Palácio dos Bandeirantes só para vê-lo de perto, durante visita que fez ao Brasil.
Após acompanhar seus acenos para o público restrito, no salão do palácio, esperei que o líder deixasse o local para perguntar ao então governador Luiz Antônio Fleury Filho:
“Ele é hostilizado pelos seus críticos e louvado por seus apoiadores. Quem tem razão, na sua opinião, governador?”.
Fleury, com sabedoria, afirmou para mim que Gorbatchov, por sua ânsia pelo diálogo e defesa dos direitos democráticos, era acima de tudo um injustiçado pelos críticos.
Decidi, então, perguntar isso ao próprio Gorbatchov. E esperei mais de 30 anos para que fosse ele o entrevistado que inauguraria meu portal E21.
No último dia 29 de abril, em meio à invasão da Rússia à Ucrânia, enviei para a sua assessoria direta, que mantinha permanente contato com ele, uma série de questões.
Considero que fui, portanto, o último a entrevistá-lo.
Não importa se outros enviaram perguntas. Dificilmente ficaremos sabendo.
Dou-me o direito, então, de ter esse privilégio.
Mesmo que as perguntas nunca tenham sido respondidas.
Ele não me respondeu que se considerava frustrado com o retrocesso da Rússia, após a nação ter tido, graças a ele, a oportunidade de se tornar um país mais democrático.
Ele não me respondeu que lhe doía ver recrudescer a guerra fria, após ter conseguido, por um tempo, inserir a Rússia em um mundo que se apresentava muito mais harmônico.
Ele não me respondeu que, ao contrário do que vislumbrava, nem o mundo se firmou como mais harmônico e nem os conflitos diminuíram tanto, como se chegou a acreditar.
Ele não me respondeu sobre sua preocupação com o fortalecimento do fascismo, com manifestações antissemitas novamente dando as caras, com o racismo e a intolerância que vociferam diante do crescimento da luta pela valorização da diversidade, com a qual ele tanto colaborou.
Ele não me respondeu que sabia que a humanidade evolui desta maneira sofrida, com forças opressoras resistindo a qualquer avanço.
Ele não me respondeu, mas tinha plena convicção disso em função da sua própria experiência.
Assim que fez todo o seu trabalho, a União Soviética se desfez em países independentes.
O anseio de cada povo, portanto, emergiu. A verdade prevaleceu.
De nada adiantou para as forças retrógradas, similares às do momento atual, as manobras para resistir aos avanços, fazendo-o renunciar à presidência em 1991. A semente libertária já havia sido plantada por ele.
Gorbatchov não me respondeu que, atualmente, vivemos um momento perigoso, em que o egoísmo, o preconceito e a ganância tentam ganhar novo fôlego.
Ele não me respondeu que, por outro lado, não podemos perder a esperança. Mas precisamos ficar atentos, como ele.
Por fim, a última pergunta que Gorbatchov não me respondeu foi sobre o fato dele se sentir ou não um vitorioso.
Nem precisou me dizer que, apesar de ter renunciado ao cargo, jamais renunciou aos seus valores.
Ele não me respondeu que esse foi o seu segredo para vencer no jogo da vida. Mesmo com um mundo de aparências tentando associá-lo à imagem de derrotado.
Para esse mundo, a força da consciência, segundo o que não me disse Gorbatchov, é a melhor resposta. Até a última entrevista.
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