Esportes
Por que Sócrates ainda é tão cultuado, 40 anos após derrota no Sarriá?
Jogador, o preferido do técnico Telê Santana, é reverenciado em vários grupos nas redes sociais; por sua postura política e categoria em campo se fortaleceu com aquela Copa e se tornou símbolo da seleção de 1982
Eugenio Goussinsky
A Copa do Mundo de 1982 foi marcante por ter conseguido desfazer a lógica perversa de que a derrota significa fracasso. Naquele Mundial, ela foi substituída pela mais profunda essência do futebol. Vestindo o uniforme da seleção brasileira.
Razão, emoção, estética e conteúdo conviveram tão bem naquela equipe, que a sensação de tragédia nos dias e meses após a derrota para a Itália no estádio Sarriá, a completar 40 anos nesta terça-feira (5), se transformou em nostalgia, orgulho e encantamento pelas atuações do time comandado por Telê Santana fora de campo. E pelo capitão Sócrates dentro dele.
Ao falar com o E21 sobre aquele tempo, Renê Santana, filho de Telê, resgata o estilo de liderança de Sócrates, citando o jogador como uma referência importante para a sociedade brasileira nos dias atuais, em que a intolerância e a polarização têm prevalecido em muitas situações.
“O Sócrates era o símbolo daquela seleção, também por representar um estilo de liderança humana e democrática. Papai nunca me disse ‘O Sócrates era o meu jogador preferido’. Mas, pelo que meu pai falava, como se referia ao Sócrates, tenho certeza de que era. Da minha parte, digo que, sem dúvida, ele era o meu jogador preferido naquela seleção. Meu pai, que era conservador, confiou tanto nele que passou a admirá-lo, mesmo com a postura de esquerda do Sócrates. Ele via em Sócrates algo além da política, uma personificação, na prática, de ideais que antes, na visão do Telê, pareciam utópicos”, diz.
Até hoje, quase 11 anos após sua morte, em dezembro de 2011, aos 57 anos, o paraense Sócrates, nascido em 19 de fevereiro de 1954, é cultuado como um ícone, principalmente fora do Brasil. Em grupos de Facebook, por exemplo, os comentários costumam ganhar muito volume, em relação a outros craques daqueles tempos, quando surge um post sobre Sócrates.
“What a graceful wonderful player!!””Great for the best time.” “The Doctor”. “Genius”. São alguns termos usados em grupos como o Vintage Football. Ele também inspirou a biografia “Doctor Socrates: Footballer, Philosopher, Legend”, escrita pelo jornalista escocês Andrew Downie e recentemente traduzida no Brasil.
Renê considera que a mensagem passada por Sócrates naquela época o torna um personagem reverenciado pelo mundo, justamente em um momento que o mundo tem precisado de mais paz e justiça.
“Essa admiração permanece por causa do jogador formidável que ele foi, além de um líder que se impunha e orientava sem gritos, respeitado pelos companheiros e contestando de cima para baixo os erros no futebol. Mesmo com sua formação e rigidez um pouco conservadora e hierárquica, meu pai, Telê, sempre se posicionou com total independência e luta sobretudo da consciência da sua classe, de atletas e jogadores profissionais. Quando a lucidez e a personalidade socrática se pronunciavam em justa defesa dessas causas, tinha apoio do mestre”, conta Renê.
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Convivência e causos com Telê
A convivência entre Sócrates e Telê retratava a forma como Sócrates via a relação hierárquica entre os profissionais. O bom chefe, para ele, era o que tinha uma autoridade natural, com a habilidade de lidar com as questões humanas de seus comandados. Eram comuns, com isso, as brincadeiras entre ele e Telê, que aceitava essa relação com humildade, sem perder a consciência de sua função de comandante do grupo. Neste sentido, Telê aprendeu muito sobre democracia com Sócrates.
“Certa vez, meu pai me contou que batia um papo com o Sócrates e, nesta conversa, lhe disse que era um dos poucos jogadores (Telê, nos anos 50) que tinha carteira de trabalho assinada, pois, ainda jovem, foi contratado para trabalhar em empresas só para jogar futebol”, conta Renê.
Sócrates, que era médico formado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP), então retrucou, com bom humor:
“E eu que recebi um diploma só porque jogava bem?!”.
Telê riu e respondeu.
“Isso não acontece, para com bobagem. Na esquerda temos, como você, os maiores contadores de causos”.
E citou um causo de João Saldanha, que contou a história de que, na China, pisou no pé de uma pessoa durante conferência do Partido Comunista.
“Uma vez, o Saldanha contou para o papai que pisou no pé de alguém na conferência do Partido Comunista na China. Quando se virou, disse que a pessoa era Mao Tsé-Tung (ditador da China entre 1945 e 1976). E então, fazendo-se de famoso, Saldanha disse ter ouvido de Mao a seguinte reclamação: ‘Pola, Jão!’ (sic, de acordo com convenções da época)”
Sócrates, então foi direto com o chefe, citando um episódio entre Telê e o então presidente do Brasil, o general João Batista Figueiredo (1979-1985), ainda na ditadura militar.
A situação lembrava a troca de farpas entre o então técnico do Brasil, João Saldanha, e o presidente Emílio Médici, anos antes, quando a ditadura era ainda mais rígida e perversa.
“E você, que depois disse para o Figueiredo não se meter na escalação da seleção, pois você nunca havia se metido no seu ministério? Acho que vou ter de te chamar de ‘companheiro Telê’, mas depois que te soltarem, né?”, falou, para gargalhada de ambos.
Em termos políticos, a derrota naquela Copa até reforçou o ativismo de Sócrates, após ele vivenciar naquele grupo uma relação democrática com Telê. Ele mesmo confirmou, em entrevista à Revista ESPN de novembro de 2012, que o estilo de Telê de alguma maneira o inspirou a defender com mais ênfase a bandeira da liberdade.
“Ele era conservador, da geração de meu pai, mas o treinador mais democrático que já vi. Ele nunca impunha um time ou como ia jogar. Deixava que o time se formatasse. Ninguém foi mais democrático que ele para o time”, disse Sócrates.
Derrota inspiradora
Meses depois da Copa, lá estava Sócrates, também inspirado na experiência na seleção, encabeçando o movimento Democracia Corintiana, que dava aos jogadores uma liberdade com responsabilidade, fazendo as decisões para o grupo serem aprovadas pelo próprio elenco, em votações.
A luta de Sócrates ganhou ainda mais força quando, em 1984, ele foi um dos mais efusivos participantes dos comícios pela volta das eleições diretas no Brasil, na famosa campanha das “Diretas Já”.
Antes, porém, ele já havia trabalhando esse lado político, desde que chegou ao Corinthians e conheceu a cidade grande, conforme conta o jornalista e escritor Tom Cardoso, autor da biografia, “Sócrates: A história e as histórias do jogador mais original do futebol brasileiro”, publicada em 2014.
“Ele tem essa projeção internacional justamente pela postura dele dentro e fora de campo, principalmente à frente da Democracia Corintiana, depois na Copa de 86 ele usou aquela faixa ‘Parem a Guerra’ e a isso se acrescenta também o fato dele ter sido o capitão da seleção de 82 e pelo aspecto técnico liderança. Uma seleção que não ganhou o Mundial mas é tida como uma escola de futebol. Por exemplo, o (Josip) Guardiola (técnico consagrado) fala muito daquela seleção”, diz.
Curiosamente, a derrota do Brasil ocorreu em Barcelona, a mesma cidade onde, anos depois, Guardiola despontou para o futebol, primeiro como jogador, depois como técnico.
Cardoso ressalta que a liderança de Sócrates se impôs sem maiores esforços.
“Entrevistei o Falcão e ele disse que todo mundo era ali capitão dos respectivos times, mas o Sócrates virou capitão naturalmente e a liderança dele era tão natural, tão natural que nunca se questionou o fato dele ser capitão.
Outro ponto que faz de Sócrates um personagem único, conforme conta Cardoso, era sua genialidade original.
“Ele é lembrado ainda também pela originalidade no campo, com os toques de calcanhar. Sócrates era um jogador muito diferente, se pensarmos que ele tinha 1m91 de altura e calçava 41, com um pé de bailarina e a dificuldade que ele tinha de girar o corpo. Era mais fácil tocar rapidamente de calcanhar, por todos esses aspectos a projeção internacional dele passa por aí.
Convívio com Wladimir
Cardoso lembra, no entanto, que o viés político de Sócrates só surgiu depois dele se transferir para o Corinthians, em 1978, tendo muita influência do lateral-esquerdo Wladimir, de quem Sócrates se tornou grande amigo.
“É bom que se diga que toda essa postura veio do convívio dele com o Wladimir, que era um negro que estudava iorubá (língua africana), participava dos festivais do Colégio Equipe e que conscientizou o Sócrates politicamente”, diz.
Conforme conta Cardoso, Sócrates, logo que chegou de Ribeirão Preto (atuava pelo Botafogo-SP) para jogar no Corinthians, em 1978, era apolítico.
“Era até alienado neste aspecto, queria só tomar cerveja. Ele passa a ter essa posição política com a convivência com o Wladimir e com o Adilson Monteiro Alves (que foi diretor de futebol do Corinthians nos tempos da Democracia Corintiana), que era um sociólogo. Tanto que em 1979, ainda, sem ter essa conscientização, ele deu uma entrevista na Playboy elogiando o general Figueiredo, coisa que ele nunca faria anos depois”, afirma.
Mas depois, também alimentado pelo convívio com Telê, a defesa dos ideais democráticos passou a ser a sua prioridade.
“A partir de então, o Sócrates sempre se posicionou. Hoje esse tipo de postura é muito importante. Na época, o Casagrande foi mais uma liderança comportamental do que política e hoje exerce mais uma liderança política. Todo mundo que está sob o governo Bolsonaro tem que naturalmente se posicionar politicamente e o Sócrates sempre se posicionou” diz.
Sócrates se filiou ao PT, mas nem por isso deixou de se posicionar, lembra Cardoso.
“Ele se posicionou até contra o PT, foi secretário de Esportes do governo Antônio Palocci (Ribeirão Preto) e quando ele viu que a máquina não andava ele pulou fora, ficou só seis meses. Foi também o anticandidato à presidência na CBF, muito antes disso virar uma moda necessária, das personalidades se posicionarem politicamente. O Sócrates sempre teve essa postura independente”, completa.
Quarenta anos se passaram e mostraram que 1982 foi um ano de vitórias. Principalmente para Sócrates e sua aguda percepção de que aquele Mundial teve a capacidade de colorir de autoestima a alma do brasileiro. Revitalizou o orgulho pelo País, por meio do futebol.
Sócrates liderou aquele time e soube ampliar essa liderança nos anos seguintes. Para outros setores, para o Brasil como um todo. Como poucos, ele percebeu que, na sua função social, o futebol era muito mais do que um jogo. E ele, muito mais do que um jogador.
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Allan Schefler
5 de julho de 2022 às 19:59
Ótima reportagem, Sócrates era um gênio, mas o Raí jogou mais. kkkkk.
Parabéns pelo portal .
Eugenio Goussinsky
6 de julho de 2022 às 11:29
Obrigado, Allan, abração