Esportes
Por que prevalece a impunidade em casos de racismo no futebol brasileiro?

Ministério Público do Estado de São Paulo, em agosto de 2022, instaurou inquérito em busca destas respostas
– Por Eugenio Goussinsky
Em 16 de novembro de 2021, a jogadora Adriana Leal da Silva, do Corinthians, foi chamada de “macaca” por uma adversária do Nacional do Uruguai, após marcar o sexto gol da partida, vencida pelo Corinthians por 8 a 0 e válida pela Copa Libertadores da América.
A agressão foi relatada pelo perfil da equipe feminina do Corinthians no Twitter. Apesar da indignação de parte da opinião pública, não houve desdobramentos jurídicos sobre o caso. Nem no Brasil, nem no Uruguai, por parte de autoridades brasileiras.
No Brasil, a pena para injúria racial, quando a dignidade de uma pessoa é atacada com ofensas à sua raça ou cor, varia de um a três anos de prisão e multa (desde janeiro último é crime).
Já o racismo, ofensa a um grupo, com discriminações em relação à cor, raça, nacionalidade, religião ou etnia, a pena varia de dois a cinco anos, mais multa.
No 8º Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol, feito pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol, constatou-se, no entanto, que, dos 64 casos de discriminação racial no futebol brasileiro, apenas um levou a uma condenação na esfera judicial, quando o torcedor que cometeu o crime passou a ser obrigado a comparecer à delegacia nos horários dos jogos de sua equipe.
Ao relatar quais foram as consequências da maioria dos casos, o Observatório utilizou termos como “não foram divulgadas outras informações sobre a investigação do caso”; “não foram encontrados desdobramentos sobre a acusação de injúria” e “não há mais detalhes sobre a investigação do caso”, na maioria das situações.
E, mesmo que muitas delas estejam correndo em segredo de justiça, esse tipo de encaminhamento dá quase a convicção de impunidade.
Apenas nove casos tiveram punições na esfera desportiva, com multas, perdas de mando de jogos e afastamento de dirigentes, o que, de acordo com o texto introdutório do relatório, é insuficiente.
“Na legislação brasileira, o racismo é crime inafiançável. No futebol não deve ser diferente. Por isto entendemos que os episódios de discriminação devem ser denunciados, investigados e, quando confirmados, punidos com rigor, como atos racistas legítimos. Defendemos a inclusão de punições esportivas severas aos envolvidos em episódios de violência, racismo e discriminação no futebol. Sanções pecuniárias não bastam!”.
E por que, apesar de o número de denúncias ter aumentado consideravelmente nos últimos anos, quase nenhum caso é devidamente punido?
Em busca desta resposta, em agosto de 2022, o MP-SP (Ministério Público do Estado de São Paulo) instaurou inquérito para apurar o que tem sido feito em relação às denúncias de racismo e injúrias raciais no futebol e como elas têm sido encaminhadas.
“Ao Poder Público, especialmente às forças de segurança pública, cabe atuar para identificar os autores de crimes de racismo ou injúrias raciais e adotar as medidas administrativas que permitam o oferecimento de denúncia e o início da persecução penal em juízo, no legítimo exercício do jus puniendi, procedendo à prisão em flagrante e instauração de inquérito policial. Ao Poder Público também cabe atuação no sentido de transformar estádios de futebol em ambientes menos hostis a minorias sociais, de modo a se garantir o direito a cultura dessas” afirma um trecho do documento expedido pelo MP-SP.
No ofício enviado à Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo, o MP questionou dois pontos, que são os seguintes:
“Se existe um procedimento operacional padrão específico para atuação da Polícia Militar do Estado de São Paulo em casos de discriminação, racismo e LGBTFOBIA em estádios de futebol; Se existe controle da quantidade de crimes de ódio/discriminação contra população negra, LGTBQIA+, idosa, com deficiência ou de origem étnica – e quais foram encaminhamentos dados – praticados em Estádios de Futebol do Estado de São Paulo”.
Um dos signatários do documento, Roberto Bacal, 1º Promotor de Justiça do Juizado Especial Criminal do MP, afirmou ao portal E21 que “o combate ao racismo é prioridade na promotoria do Anexo do torcedor (Jecrim – Promotoria de Justiça do Juizado Especial Criminal e Anexo do Torcedor)”.
Racismo estrutural
A cada escândalo discriminatório no Brasil, o racismo estrutural mostra que ainda está presente de forma intensa.
E racismo estrutural não é apenas um termo que serve como pretexto para amenizar aquele racismo direto, efetivo. O racismo estrutural é tão nocivo quanto. Está presente no discurso de ódio contido das pessoas, e vem à tona muitas vezes de repente, revelando um lado perverso adormecido em muitas pessoas que se diziam antirracistas.
O racismo estrutural também aparece no formato da indiferença real, que toma o lugar do discurso indignado e contribui para a impunidade em toda a sociedade. Inclusive no futebol, conforme afirma o sociólogo Rafael Mantovani, doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina.
Ele afirma que, no Brasil, grande parte daqueles que não integram a comunidade negra sabe muito pouco o real sentido de sensibilidade racial.
“Eles imaginam que ser antirracista se resume a não ofender negros, quando isso é, na realidade, princípio mais básico de sociabilidade. Entender o racismo significa colocar em xeque toda a estrutura de poder e a sua própria posição social privilegiada, o que não querem jamais fazer”, afirma.
Isso, segundo ele, fica demonstrado nas campanhas antirracismo implementadas por muitos clubes após algum escândalo ligado ao tema. Mas que não têm continuidade na prática, já que, conforme afirma Mantovani, as iniciativas não vão à raiz do problema. Nenhum clube, afinal, se mostraria disposto a até ser prejudicado na tabela para combater de fato esse tipo de preconceito.
“Isso só mudaria se houvesse um desejo genuíno de lutar contra essa chaga. Mas parece que, como tudo, o mais importante acaba sendo livrar o próprio clube da culpa sem grandes repercussões para voltar a se pensar sobre o que é primordial para eles: estar na ponta da tabela”, afirma Mantovani.
O sociólogo, ainda, vai além. Falta também uma maior e mais efetiva empatia.
“E muito importante também seria pensar em como está organizada a estrutura do clube. São brancos comandando e negros responsáveis pela execução do futebol arte? Isso tem dois problemas: o primeiro deles é a legitimação do racismo na própria hierarquia do clube. A segunda é o incentivo àquele pensamento que separa os que seriam responsáveis pelo pensamento – seja da organização do clube, seja das estratégias de jogo – daqueles que simplesmente executam a labuta, como se ela fosse quase mecânica. A racionalidade seria atributo específico de brancos; o corpo, dos negros – isso é racismo, o mais elementar. Os clubes estão mudando isso?”
Além da visibilidade
O fato de o tema ter obtido maior visibilidade do que a de décadas atrás é um passo adiante, segundo o próprio relatório. Hoje, pelo menos há indignação, algo que não ocorria antes.
“Por outro lado, ainda que de forma lenta, acreditamos que a mudança está acontecendo. Além do fato de que o racismo, a homofobia, o machismo e outras formas de opressão estejam progressivamente sendo cada vez mais combatidas por todos, um indício claro é o despertar da consciência dos atletas. Os jogadores, com muita coragem, começaram a denunciar as agressões sofridas no momento que elas acontecem, não raro havendo a mobilização imediata de autoridades policiais para o encaminhamento das denúncias”, diz um trecho do documento.
Essa discussão aberta, no entanto, ainda não tem conseguido seguir adiante em forma de ação. Além da sensação da impunidade, fica a impressão de que outras instituições, como a imprensa e os patrocinadores, poderiam tomar a iniciativa de, por exemplo, deixar de transmitir ou financiar clubes com torcidas cujo histórico tem seguidos atos de racismo.
Para o sociólogo Mantovani, a situação é similar à que impede os clubes de olharem para si mesmos em busca de soluções mais profundas. Neste sentido, segundo ele, o próprio sistema tem impedido tais iniciativas.
Para tanto, ele cita um pensamento de Maria Aparecida da Silva Bento, psicóloga e ativista brasileira, diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, em prefácio do livro de Lia Schucman, “O encardido, o branco e o branquíssimo”.
“Nesse sentido, a mudança na situação das desigualdades raciais tem sido limitada, pois os espaços institucionais que devem viabilizar as políticas de combate ao racismo e/ou de promoção da igualdade racial são ocupados por brancos, em sua maioria homens, que buscam formas de minimizar o impacto das políticas de combate ao racismo e de promoção da igualdade racial”, escreve a psicóloga, conhecida como Cida Bento.
Mas, mesmo se as devidas punições passarem a ser aplicadas, estas terão de servir para que o problema mais profundo, de fato, seja combatido, conforme destaca Mantovani. Neste caso, seria o de desconstruir uma estrutura racial desigual. Sem isso, nem as punições seriam capazes de se sobrepor a esse racismo estrutural.
“O combate ao racismo parece se resumir, antes de tudo, à punição das manifestações mais claras e ostensivas de racismo. Não existe um efetivo questionamento sobre os pilares da desigualdade racial e meios sociais eficazes de combatê-la no cotidiano: isso só parece urgente quando aparece o xingamento, que é uma manifestação de um fato social que continua forte. Forte e tem os seus arroubos de demonstração nas ofensas. Querer impedir os arroubos não inibe o fato social, que está ali. E existindo o fato social, haverá arroubos, punidos ou não”, completa Mantovani.
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