Ciência e Tecnologia
‘Maior lago de todos os tempos’, revela detalhes sobre a vida na Terra
Em entrevista exclusiva ao portal, o professor Dan Palcu, da USP, conta que descoberta do Paratethys, que entrou para o Guinness Book, é uma referência para os estudos das alterações climáticas no planeta
Por Eugenio Goussinsky
Uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) sobre um lago gigante que existiu há cerca de 11 milhões de anos, levou a instituição a entrar pela primeira vez no Livro dos Recordes, o Guinness World Records 2024.
O megalago, denominado Paratethys, abrangia uma área enorme de aproximadamente 2,8 milhões de quilômetros quadrados, preenchida com mais de 1,8 milhão de quilômetros cúbicos de água salobra. Se estendia do leste das montanhas dos Alpes até as regiões hoje anexadas ao Cazaquistão. Parte de sua superfície hoje está envolvida por falésias na Bulgária.
O Paratethys passou a ser chamado oficialmente de ‘O maior lago de todos os tempos”, em estudos liderados pelo cientista Dan Palcu, romeno graduado pela Universidade de Bucareste, com uma equipe de pesquisadores do Instituto Oceanográfico da USP e colaboradores. Palcu fez o pós-doutorado na USP.
A pesquisa mostrou que alterações climáticas provocaram diminuições do volume local. Na crise mais severa, o megalago sofreu uma redução de mais de dois terços da sua extensão e um terço do seu volume, com a queda do nível da água em até 250 metros. Essa transformação teve um impacto devastador na fauna, resultando na extinção de muitas espécies.
O Mar Negro moderno, antes um lago de água doce, é um reflexo de várias características ambientais do antigo homólogo, o Paratethys. Carentes, em grande parte, de oxigênio essencial para a vida, suas profundezas apresentam águas abundantemente carregadas com sulfureto de hidrogénio.
Trata-se de um gás tóxico prejudicial para os seres humanos e para a maioria das espécies animais. Em entrevista ao portal E21, Palcu conta como a preservação ambiental pode ajudar a evitar a liberação de metano pelo mar e mais detalhes sobre a relevância da história do Paratethys para os dias atuais.
E21 – Hoje o Paratethys está seco. Quais as condições do ambiente e a descrição do local?
Hoje, as depressões que antes eram preenchidas com a água do megalago Paratethys estão preenchidas com sedimentos e transformadas em regiões férteis (na Hungria, Romênia, Ucrânia, Rússia, Bulgária, Geórgia e Azerbaijão) ou ainda com água do Mar Negro (o maior mar tóxico do mundo), ou água de salinidade muito baixa no caso do Mar Cáspio (que é o maior lago do mundo).
E21 – Quais eram as causas das crises hidrológicas e secas que ocorriam e que contribuíram para o fim do megalago? Teve a ver com alguma ação humana?
Os períodos de seca da Paratethys ainda são um mistério, mas ocorreram muito antes da presença humana na Terra. No entanto, há um sinal de alerta significativo. O início da crise do megalago é sincronizado com a perda de grandes áreas florestais devido ao clima seco e incêndios naturais.
Essas florestas nunca retornaram às vastas áreas que ocupavam ao redor da Paratethys e, após o seu desaparecimento, não apenas o Paratethys, mas a maior parte do continente euro-asiático tornou-se mais árida.
E21 – Os botos vieram dos golfinhos, em função do isolamento do mar. Há algum indício de que o Rio Amazonas passou por fenômeno parecido, sendo antes um mar?
Exatamente os “botos do Paratethys”, eram descendentes de várias espécies de golfinhos que ficaram presas no megalago e se adaptaram para viver em águas doces ou de baixa salinidade. Encontramos a maioria de seus fósseis em várias áreas alagadas formadas por grandes rios na margem do lago.
Agora, o boto é um nome original do português dado a vários tipos de golfinhos e botos fluviais nativos da Amazônia e dos afluentes do Rio Orinoco que se originam de golfinhos marinhos que viveram em um mar que corresponderia à Amazônia ocidental, uma vez conectado ao Mar do Caribe por meio de um estreito situado na atual Venezuela ocidental.
À medida que o mar se desconectou do oceano e se transformou em uma área alagada, os golfinhos se adaptaram e se tornaram uma espécie de golfinhos endêmicos, conhecidos popularmente como botos em um processo natural muito semelhante à evolução dos golfinhos endêmicos do Paratethys.
Então, na verdade o Paratethys tinha uma fauna golfinhos endêmicos pré-históricos, a gente chama eles de botos para facilitar a comparação e porque se tratam de animais com uma evolução parecida com a dos botos da Amazônia, mas o termo botos é um termo brasileiro.
E21 – De que maneira sua equipe conseguiu descobrir os limites deste antigo megalago?
Minha equipe compilou informações coletadas ao longo de mais de um século. Utilizamos descrições da localização de vários fósseis (como conchas, por exemplo) ou descrições de locais geológicos onde era possível observar formações rochosas específicas de costas ou deltas pré-históricos, para traçar a linha costeira e as praias do lago.
Depois, com dados de estudos sísmicos (verdadeiras radiografias da crosta terrestre) foi possível caracterizar as partes mais profundas do lago. Essas informações foram comparadas com referências modernas para estimar a profundidade do lago e, a partir daí, fomos capazes de interpolar a paleobatimetria do lago, desde as bacias mais profundas até as partes mais rasas do lago.
E21 – De que maneira este megalago responde às flutuações climáticas? Pode citar um exemplo?
A referência mais fácil de usar para as crises do Paratethys é uma das mais tristes catástrofes ecológicas do século 20: O agora extinto Mar de Aral. Este lago da Ásia Central desapareceu devido à atividade humana (produção de algodão) no final dos anos 70.
Em seu lugar, há grandes desertos tóxicos de onde os ventos sopram areia, poeira e sais tóxicos que estão envenenando as terras e assentamentos ao redor. O que resta do lago são algumas pequenas lagoas de água doce na periferia do lago extinto e um lago no meio da antiga bacia, cheio de água tóxica, saturada em sal, um verdadeiro mar morto, no meio de um deserto tóxico, com ruínas de cidades e vilas abandonadas, marcando a antiga beira do lago.
E21 – Com o Paratethys ocorreu algo similar, mas mais lento, por não ter a participação do homem?
A gente imagina que o Paratethys passou por uma crise parecida, mas que aconteceu de forma mais gradual. Os animais que sobreviveram a essa crise estavam doentes (provavelmente devido a essas águas tóxicas). Nós também acreditamos que a constante mudança das linhas costeiras afetou os recursos freáticos, que levou ao ressecamento das florestas (também provavelmente influenciado pelos ventos tóxicos e salgados).
E21 – Quais as semelhanças entre o Paratethys e o Mar Negro e como isso pode ajudar na preservação ambiental?
O Mar Negro é a maior bacia que sobreviveu desde a época da Paratethys. Assim como a Paratethys (que apresentava uma forte estratificação de suas águas), esta bacia é afetada pela estratificação hídrica. Isso significa que no fundo do Mar Negro, assim como no caso do Paratethys, existem enormes acumulações de metano, na forma sólida, que podem ser liberadas se as águas se aquecerem.
Estudamos a longa história do Paratethys e descobrimos que em determinados momentos, quando ele se reconectava com o oceano, a reconexão desencadeava o aquecimento das águas do fundo e levava a cataclismos ambientais. Eventos semelhantes podem ocorrer num futuro próximo (provavelmente não na nossa geração) e queremos compreender esses cataclismos passados para estarmos preparados para evitá-los no futuro.
E21 – O Mar Negro, atualmente, colabora como causa ou consequência do aquecimento global? Por quê?
O Mar Negro é uma bacia excepcional que passou a ser um lago de água doce há cerca de 8 mil anos, quando foi inundado pelo mar devido ao aquecimento do clima no final da última Era do Gelo. Hoje, a maioria das águas do Mar Negro não contém oxigênio e é rica em nutrientes e H2S, enquanto seus sedimentos contêm grandes quantidades de metano.
Devido à sua sensibilidade às mudanças climáticas, a minha equipe está preocupada que o frágil equilíbrio que mantém os ambientes do Mar Negro possa entrar em colapso, desencadeando a liberação de metano na atmosfera e derramamentos de águas tóxicas no Mar Mediterrâneo próximo.
E21 – Muitos dizem que é a natureza a responsável pelas mudanças climáticas, como vimos por exemplo, nos fenômenos que determinaram a extinção dos dinossauros e, possivelmente, situações como a do megalago. Com quais argumentos você rebate esta tese e mostra que, além de colaborar com a preservação, a ação humana pode até evitar que novas catástrofes naturais ocorram?
A vida e o clima estão em constante mudança, e não há dúvida de que o clima de nosso planeta não é estático. No entanto, o que observamos nas mudanças climáticas passadas que ocorreram na Terra é que a velocidade dessas mudanças era muito mais lenta.
A partir do que vemos no registro geológico, parece que os ecossistemas da Terra podem lidar com esse ritmo mais lento das mudanças naturais que o planeta experimentou. Mas será que esses ecossistemas podem se adaptar se a velocidade dessas mudanças aumentar?
Durante as recentes eras glaciais, é possível observar como as zonas de vegetação se deslocaram para o sul ou para o norte, refletindo as mudanças climáticas. No entanto, mesmo assim, esse processo desencadeou a perda irreversível de muitas espécies e, às vezes, de ecossistemas inteiros. No caso do Paratethys, as crises hidrológicas foram tão amplas que muitos ecossistemas, como as florestas tropicais, um dos ecossistemas vivos mais antigos da Terra, foram perdidos de forma irreversível.
Eu acredito que as atividades humanas estão acelerando processos ambientais e desestabilizando mecanismos naturais, o que pode desencadear consequências imprevistas para nossa civilização, que é tão frágil quanto a floresta tropical que corremos o risco de perder irreversivelmente.
E21 – Como o Mar Negro pode ser preservado e por que o Parathetys não resistiu?
A preservação do Mar Negro está diretamente ligada à estabilidade de suas conexões com o oceano. Se essas conexões aumentarem, o Mar Negro reagirá, e ainda não sabemos em que ponto essa reação pode se tornar catastrófica. Como você provavelmente se lembra, apenas alguns anos atrás, o Mar de Mármara (a conexão do Mediterrâneo com o Mar Negro) foi devastado por afloramento de algas devido a uma combinação de poluição, excesso de nutrientes (provavelmente do Mar Negro) e águas excepcionalmente quentes.
Isso foi um forte alerta para minha equipe, especialmente porque publicamos alguns anos antes um cenário semelhante baseado em nossos estudos da Paratethys.
E21 – Qual a importância deste trabalho ter entrado para o Guinness Book?
Eu vejo alguns pontos importantes aqui:
Nosso estudo abre uma nova direção de pesquisa – pois ninguém havia imaginado antes que corpos d’água tão grandes existissem na Terra. No entanto, ainda sabemos muito pouco sobre esses corpos d’água. O reconhecimento do Guinness fornece uma promoção internacional que, esperançosamente, levará a uma melhor compreensão desses megalagos.
O reconhecimento também destaca nossa equipe: Neste momento, nossa equipe é líder mundial no estudo dessas bacias de água, e estamos orgulhosos de mostrar que a ciência brasileira pode liderar uma direção de pesquisa de interesse global. Espero desenvolver nossa equipe, expandi-la, para que possamos proporcionar oportunidades de estudo, formação e pesquisa para as próximas gerações de pesquisadores brasileiros.
Este estudo mostra que a pesquisa também pode ser “legal” e esperamos que atraia jovens pesquisadores futuros, que são muito necessários para a compreensão e conservação de nosso planeta.
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