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Polarização da amizade

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Maria Virginia Camacho e Mariano David Rosas Venezuela amizade
Maria Virginia Mariano David se conheceram em um projeto da prefeitura de El Vigía | Foto: Acervo/Maria Virginia Camacho/Mariano David Rosas

Em meio à radicalização máxima na Venezuela, dois amigos resistem às fronteiras da ideologia

Por Eugenio Goussinsky

As diferenças entre os venezuelanos Mariano David Rosas, 51 anos, e María Virginia Camacho Valbuena, 38 anos, não são poucas. Ainda mais nestes tempos de polarização. A Venezuela se tornou o palco máximo de desavenças. É comum ver partidários de Nicolás Maduro se colocarem de um lado das manifestações e opositores do outro. Se houver encontro, há risco de pancadaria.

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Mas os dois conseguiram encontrar um ponto em comum: o da amizade. Acima dessas acirradas disputas políticas. Até na Venezuela.

David , nascido em Caracas, é adepto do chavismo e defensor do contestado Maduro. Maria Virginia, natural de El Vigía, Mérida, é oposição ao governo. Os dois, porém, não escondem o afeto de um pelo outro. Este sentimento embala a participação de ambos em projetos de design e de marketing juntos.

O primeiro contato entre eles ocorreu quando ela era assistente do prefeito Alberto Adriani, de El Vigia. David era o designer gráfico de toda a imagem da prefeitura, no departamento de imprensa.

“Formávamos uma equipe muito legal de trabalho, ele, as jornalistas, a fotógrafa”, conta Maria Virginia ao Portal E21.

“Quando não tínhamos muito trabalho a fazer, contávamos histórias e eu gostava muito de ver aquele rapaz tão talentoso desenhar seus bonequinhos e apresentar com as cores. Vi realmente um homem muito talentoso e eu gostava da sua sensibilidade, gosto da sua sensibilidade para comigo”, elogia a amiga.

“Desde então passei a admirá-la por ser uma mulher íntegra, mãe e uma profissional ativa”, conta David ao Portal E21.

Para Maria Virginia, filha de pais divorciados, a experiência em família a ajudou a aprender a lidar com rupturas.

“Houve momentos realmente difíceis onde era preciso decidir entre um e outro e sempre nesse processo de mudança havia choro, mas, enfim, de alguma forma ou outra nos davam o carinho que precisávamos para crescer”, revela ela.

“Pois com muitas dificuldades também, com muitas limitações, mas sempre com o apoio da minha mãe. Meu pai foi muito ausente e tivemos o carinho e também o cuidado dos nossos avós.”

Infâncias que moldam ideologias

A infância de David também moldou quem ele é. Isso vale para todos, mas, em relação a ele, tem um caráter especial. Seu pensamento político é uma espécie de extensão da relação com seu pai. E a paixão pelo futebol serviu como uma maneira de associar ideologia e paixão, cujo representante máximo é o seu ídolo, o ex-craque argentino Diego Armando Maradona, símbolo da irreverência.

“Minha infância foi muito feliz, tive a oportunidade de ser muito livre graças aos meus pais”, conta ele. “Nunca fui à escola primária por causa da ideologia do meu pai. Joguei muito futebol, graças ao Maradona e ao meu pai.”

Vinda de uma infância com dificuldades financeiras, Maria Virginia buscou, por meio dos estudos, uma forma de progredir. Tornou-se uma empreendedora em sua própria carreira. Estudou ciências políticas, passou também a atuar com marketing, além de ser locutora e palestrante, para ajudar no sustento da família, formada por ela, o marido e dois filhos.

“Tive que aprender muitas coisas porque amo esses temas e quis também modernizar um pouco o leque de ação da ciência política”, conta ela. “Penso que esses estudos e, além disso, o dom da oratória e da palavra que tenho de subir em palcos, me permitiram robustecer meu vocabulário e levar uma mensagem sempre a qualquer lugar. Eu sou mais de construir, de edificar, gosto disso, quero que em cada espaço em que eu estiver possa motivar e edificar as pessoas a fazermos coisas diferentes.”

David também não se baseia apenas em uma atividade.

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“Trabalho como designer gráfico para um órgão do governo e também de forma independente”. E buscou incluir o futebol também como uma ferramenta profissional. “Estou envolvido em vários projetos relacionados ao lado social do futebol.”

A amizade além da política

Para lidar com o que têm em comum, no entanto, eles precisaram aparar arestas, neste ambiente cheio de turbulências que é a política venezuelana. É difícil não se contagiar com esse clima. Até os amigos.

Na época da última eleição, cuja vitória de Maduro foi contestada, ocorreu um atrito entre os dois, conta Maria Virginia. Quase irreversível.

“Não tenho um lado, embora evidentemente esteja como oposição porque já não posso estar daquele lado porque não vejo as coisas fluírem e eu, como mulher e jovem, quero que as coisas fluam e não vejo, vejo estagnação, vejo mentiras, vejo coisas”, conta ela.

“Não digo que deste lado não haja, também há gente ruim, mas não posso apoiar mais. Então, em virtude dessa posição que assumi, pois David se distanciou e houve um dia em que tivemos um pequeno problema, um desencontro, e ele parou de falar comigo, até me bloqueou no WhatsApp.”

Ela sentiu que a ameaça de que a amizade esfriasse era pior do que ter ou não razão. Confirmou que o amigo não trocara de número. Por meio do número de um conhecido em comum, escreveu para ele:

“‘Porra, cara, por que você vai me bloquear? Eu te quero muito, o fato de politicamente não estarmos iguais, eu sinto um carinho…’ e ele meio que entendeu e me desbloqueou e voltamos a nos falar. Então nosso dia a dia tem sido um pouquinho fugaz, muito, muito, muito fugaz, mas quando nos sentamos para conversar falamos de muitas coisas e sempre de projetos. David é um homem de projetos, então sempre diz: ‘Vamos fazer isso’. De fato, há vários projetos que temos em andamento.”

Para David, esta questão ficou no passado. E mesmo morando hoje em diferentes cidades, a troca de mensagens permanece.

“Mantemos sempre a comunicação, ela tem me orientado bastante em temas de gestão empresarial e marketing digital.”

David é um homem objetivo, cheio de ideais e que mantém um discurso direto e firme. Nem por isso, conforme constata Maria Virginia, ele deixa de ser uma pessoa pura e sensível. Para ela, isso vale mais do que qualquer tipo de ideologia.

“Eu sou cristã, eu acredito em Deus, eu acredito em Cristo e eu acredito que em qualquer país e sob qualquer cenário, desde o respeito e desde a consciência plena do ser e do estar, você pode ter uma amizade entre opositores e isso é completamente válido”, prossegue ela.

“Eu me amparo nessa frase de Hannah Arendt: a condição humana vai além de qualquer diferença política, ideológica, religiosa. Não vejo as pessoas como meus oponentes porque pensam diferente. Eu sim posso dizer, tenho muita gente a quem não quero e compartilhamos ideologicamente a mesma posição. Mas quando eu vejo que nos valores são pessoas que buscam prejudicar outras – e opositoras também como eu – desde a discórdia, desde a sátira, desde a mentira, desde o abuso, olha, eu me afasto.

Seu radar sensitivo logo detectou que David tem mais qualidades do que muitas pessoas que criticam o atual governo.

“Isso eu não vi em David, por exemplo. Com tudo que tivemos, nosso impasse, justificado porque talvez naquele momento estivéssemos exaltados e etc., mas para mim valeu mais a amizade e por isso o procurei, porque para mim valem os amigos como ele, independentemente da postura ideológica.”

Amor pelo país

David também assume seu carinho pela amiga. Ao se estilo. Sem deixar de incluir um pouco de sua convicção política para descrever sua amizade.

“Se desenvolvermos a capacidade de respeitar, poderemos viver em perfeita harmonia com o entorno”, afirma o designer. “A paz e a liberdade são valores únicos que só podem ser plenamente compreendidos por quem ama sua pátria e seu povo.”

Neste sentido, isso vale para os dois amigos, que amam o país, de formas diferentes.

“Nossa diferença realmente é mais ideológica do que outra coisa, porque somos muito parecidos na forma sensível de levar a vida, em servir, em impulsionar projetos para edificar”, acrescenta a amiga.

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“Eu acredito muito em David, por isso é que mantivemos dentro de tudo uma amizade baseada no respeito, porque ele viu em mim alguém que, embora seja diferente na maneira ideológica ou política de pensar, eu penso mais na parte humana”, completa Maria Virgínia.

“Independente do lado, todos nós erramos e, no final das contas, não vou dizer que eu seja mais clara que ele por ser oposição, ou que ele seja mais claro do que eu por ser do oficialismo. Cada um reage em virtude de seus estímulos. Acreditei nisso desde o princípio, no final das contas isso nos mantém, é a nossa forma de ver a vida, nossa identidade que só os amigos sabem respeitar.”

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